Por Rochelly Costa

Trinta e sete anos se passaram desde que Brasília foi alçada ao seleto rol de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. A data, celebrada em 7 de dezembro de 1987, marcou um ponto de virada para a capital do Brasil, não apenas como símbolo de modernidade, mas como reconhecimento de sua relevância universal para a história urbana e arquitetônica.

Foi a primeira cidade construída no século XX a receber tal honraria — e permanece, até hoje, como a única do gênero com essa distinção. Não foi apenas sua estética arrojada que conquistou o comitê internacional, mas o conceito urbanístico pioneiro que a estrutura, concebido por Lucio Costa e materializado nas formas curvas, simétricas e poéticas por Oscar Niemeyer.

O processo que levou Brasília ao topo do mundo

A proposta de candidatura nasceu sob a liderança do então governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira. Coube a ele articular a documentação e promover a defesa de Brasília perante a Unesco, missão reforçada pelo parecer técnico do arquiteto francês Léon Pressouyre, relator do dossiê no Comitê do Patrimônio Mundial e especialista vinculado ao Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios).

O parecer de Pressouyre foi decisivo. Em maio de 1987, ele destacou o valor excepcional do projeto de Lucio Costa como uma manifestação singular do gênio criativo humano. Contudo, seu relatório também alertava para a vulnerabilidade da cidade diante das forças do crescimento urbano desordenado e da especulação imobiliária, que já ameaçavam sua integridade original.

À época, Brasília sequer dispunha de mecanismos legais sólidos de proteção nacional. Para garantir a chancela da Unesco, era necessário não apenas comprovar a excelência da concepção da cidade, mas também adotar medidas concretas para sua preservação. Em resposta, José Aparecido publicou, em outubro de 1987, o decreto que regulamentava a Lei nº 3.751/1960, estabelecendo normas para salvaguardar a concepção urbanística original.

Quatro escalas, um ideal

O reconhecimento internacional veio com base em um conceito revolucionário para a época: o urbanismo humanista de Lucio Costa. Seu projeto vencedor do concurso público de 1957 foi fundamentado em quatro escalas de convivência e funcionalidade — monumental, residencial, gregária e bucólica.

A escala monumental abriga os órgãos de poder; a residencial, organizada nas superquadras, é voltada à moradia com qualidade de vida; a gregária, dedicada à vida social, ao comércio e aos serviços; e a bucólica, composta por parques e áreas verdes, estabelece o equilíbrio entre o concreto e o cerrado. A ideia de Costa era clara: criar uma cidade que refletisse uma nova forma de viver, onde a ordem urbana estivesse em harmonia com a paisagem natural e com a dignidade da vida pública.

Não só um projeto, mas um símbolo de liberdade

Muitos associam o traçado da cidade à imagem de um avião. No entanto, Lucio Costa preferia compará-la a uma borboleta. Já o francês Pressouyre a via como “um pássaro gigante voando em direção ao sudeste”. Independentemente da interpretação, o que Brasília simboliza, sobretudo, é um voo de liberdade criativa e social.

Engana-se quem pensa que foi a arquitetura modernista de Oscar Niemeyer a ser tombada — embora suas obras tenham sido fundamentais para a conquista do título. A Unesco tombou o plano urbano de Lucio Costa, reconhecendo ali a essência da utopia modernista que moldou a identidade brasileira no século XX. Os edifícios projetados por Niemeyer, integrados com rigor estético ao desenho urbano, apenas reforçaram a coerência e genialidade do conjunto.

Um futuro em disputa

Hoje, três décadas após esse reconhecimento global, especialistas alertam para as ameaças que pairam sobre o legado de Brasília. O crescimento desordenado, as alterações indevidas no plano urbanístico original e a pressão de setores econômicos colocam em xeque a integridade do projeto. A cidade tombada ainda enfrenta o desafio de manter-se fiel a si mesma diante da expansão que muitas vezes ignora seus princípios fundadores.

A proteção de Brasília é, acima de tudo, a preservação de uma ideia. Não apenas a de uma cidade planejada, mas a de um sonho coletivo de país, de modernidade com dignidade, de urbanismo com poesia. Manter vivo esse legado é uma responsabilidade que transcende gerações.