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22/01/2025 – 09:44 – Rio de Janeiro

No último dia 16, o presidente Lula sancionou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/24, do Poder Executivo que regulamenta a reforma tributária. Entre suas atribuições, consta o cashback, sistema que permite a devolução de valores cobrados em serviços ou bens com periodicidade mensal de consumo, inclusive os de energia elétrica.

A medida beneficiará o público de baixa renda, especificamente o responsável pela família inscrita  no Cadastro único para Programas Sociais (Cadúnico) e é destinada àqueles que tenham renda familiar mensal de até meio salário mínimo por pessoa declarada. Os requisitos são residir no território nacional e possuir CPF ativo. Entretanto, o cashback também irá considerar as compras realizadas por todos os membros que tenham CPF.

No que se refere às alíquotas, o texto estabelece a devolução de 100% da CBS (Contribuição Sobre Bens Serviços) e de 20% do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). O mesmo valerá para compra de botijão de gás de 13 kg ou fornecimento de gás canalizado, por exemplo, bem como nas contas de água e de telecomunicações.

Segundo o portal da Câmara, um outro regulamento definirá o método de cálculo e de devolução. Já a previsão para implantação do modelo cashback para CBS é o ano de 2027 e para IBS, 2029.

A Câmara informou ainda que caberá a “cada ente federativo (União, estados, Distrito Federal e municípios) a possibilidade de fixar percentuais maiores, incidentes somente sobre sua parcela do tributo e diferenciados em razão de renda familiar” (Agência Câmara de Notícias).

Ademais, a proposta pode ter implicações complexas para o setor de energia. Em entrevista com o advogado tributarista e sócio do RMS Advogados, Leonardo Roesler, a medida suscita análises distintas quanto aos seus impactos. Apesar de buscar promover maior justiça fiscal, ao aliviar o peso tributário para os mais vulneráveis, para o setor de energia elétrica essa mudança não será tão simples. Confira abaixo a análise completa.

Amanda Baroni, jornalista do Imprensa Brasília [AB]: Como essa proposta de cashback, que incluiu os serviços de energia elétrica, é recebida pelo setor? É benéfica ou prejudicial e por quê?

Leonardo Roesler [LR]: Embora não afete diretamente a arrecadação das concessionárias – já que a devolução dos tributos recai sobre o governo – empresas do setor frequentemente dependem de uma estrutura tarifária estável e previsível para garantir a sustentabilidade financeira e os investimentos em infraestrutura. O cashback, ao reduzir o custo efetivo da energia para determinados consumidores, pode criar uma pressão para que outros segmentos, não contemplados pelo benefício, absorvam parte dos custos de manutenção da rede e dos serviços regulados, caso a redistribuição de encargos seja mal calibrada.

Há um risco de que a implementação do cashback seja percebida como um paliativo para problemas estruturais do sistema tributário e regulatório da energia no Brasil, que enfrenta altos custos operacionais e uma carga tributária considerável. 

Enquanto o cashback pode ser benéfico para o consumidor final de baixa renda, ele não resolve o problema de competitividade e eficiência do setor como um todo, que permanece onerado por tributos cumulativos e encargos setoriais.”

Em países como a França, programas de reembolso parcial de tributos sobre energia enfrentaram críticas pela dificuldade operacional de rastrear consumidores elegíveis e pela incerteza sobre os impactos financeiros no longo prazo para concessionárias e governos locais. Portanto, enquanto a proposta de cashback para serviços de energia elétrica é um avanço sob a perspectiva de equidade fiscal, seu sucesso dependerá de uma regulamentação clara e de uma implementação eficiente. Uma análise criteriosa durante o período de transição será crucial para avaliar e corrigir possíveis distorções.

[AB]: Do seu ponto de vista, quais entidades ficariam com a responsabilidade de gerir isso?

Leonardo Roesler [LR]: No âmbito federal, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, como responsável pela administração da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), será incumbida de definir os critérios para elegibilidade dos beneficiários, assegurar a devolução dos tributos e monitorar o impacto fiscal. Esse papel incluirá o desenvolvimento de sistemas tecnológicos capazes de identificar os consumidores de baixa renda elegíveis para o benefício, além de garantir a integração desses sistemas com bases de dados como o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), por exemplo. 

Já os estados e municípios deverão regulamentar os critérios para a devolução de tributos no âmbito de suas competências, especialmente considerando as disparidades econômicas e sociais existentes entre as diversas regiões do país. Essa descentralização trará desafios significativos, como a padronização de procedimentos e o alinhamento entre os diferentes entes federativos, evitando redundâncias e conflitos de competência.

Além disso, é provável que agências reguladoras setoriais, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), também desempenhem um papel relevante, especialmente na fiscalização e na interface entre as concessionárias de serviços públicos e os governos. A ANEEL, por exemplo, poderia supervisionar a aplicação do cashback nos serviços de energia elétrica, assegurando que as empresas do setor cumpram as obrigações acessórias relacionadas ao mecanismo e que não haja repasse de custos indevidos aos demais consumidores.

Paralelamente, instituições financeiras públicas e privadas poderão ser envolvidas na operacionalização do cashback, especialmente na devolução efetiva dos valores aos consumidores. Bancos estatais, como a Caixa Econômica Federal, ou fintechs autorizadas poderão atuar como intermediários, garantindo a acessibilidade e a eficiência no repasse dos recursos. Essa atuação exigirá uma regulamentação clara para evitar custos administrativos excessivos e garantir que os valores cheguem integralmente aos beneficiários.

Por fim, o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Contas estaduais e municipais terão papel fiscalizador essencial, verificando a regularidade da execução do mecanismo e a conformidade das entidades gestoras com as normas legais e constitucionais. Essa supervisão será fundamental para evitar desvios, fraudes e a aplicação ineficiente dos recursos públicos.

“A complexidade dessa iniciativa, especialmente em um país com as dimensões e as desigualdades regionais do Brasil, demanda planejamento criterioso e ações concretas para assegurar sua eficácia e sustentabilidade.”

[AB]: O que seria necessário para a implementação dessa modalidade no Brasil?

A implementação da modalidade de cashback tributário no Brasil exige uma série de medidas estruturais, normativas e tecnológicas, além de uma coordenação eficiente entre diferentes níveis de governo e setores envolvidos especialmente em um país com as dimensões e as desigualdades regionais do Brasil. 

Inicialmente, seria indispensável a edição de regulamentações claras, tanto no âmbito federal quanto nos níveis estadual e municipal, para definir as diretrizes operacionais do cashback. Essas normas devem detalhar os critérios de elegibilidade dos beneficiários, os serviços abrangidos, os percentuais de devolução aplicáveis e os procedimentos para solicitação e recebimento dos valores. 

“O uso de bases de dados consolidadas, como o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), seria crucial para identificar os consumidores de baixa renda que teriam direito ao benefício, reduzindo fraudes e garantindo que o cashback alcance seu público-alvo.”

No aspecto tecnológico, seria necessário desenvolver sistemas integrados e avançados de gestão tributária. Esses sistemas devem ser capazes de calcular, processar e devolver os tributos de forma automatizada, conectando administrações tributárias com concessionárias de serviços públicos e intermediários financeiros. A Receita Federal do Brasil, em conjunto com os fiscos estaduais e municipais, precisará investir em soluções tecnológicas robustas que integrem dados em tempo real e possibilitem o monitoramento contínuo da aplicação do cashback. A utilização de inteligência artificial e big data para verificar a conformidade dos dados e prevenir abusos seria altamente recomendável.

Um ponto fundamental é o financiamento dessa modalidade. O cashback implica renúncia fiscal direta ou indireta, o que requer ajustes no planejamento orçamentário para evitar desequilíbrios nas contas públicas. A definição de fontes compensatórias para a devolução dos valores, seja pela revisão de benefícios tributários concedidos a setores específicos ou pela eliminação de subsídios regressivos, será uma etapa necessária para garantir que a implementação do cashback não comprometa a arrecadação.

Além disso, a capacitação de servidores públicos e a sensibilização dos contribuintes serão indispensáveis. Administradores tributários precisarão ser treinados para operar os novos sistemas e supervisionar a aplicação do cashback. Paralelamente, será necessário realizar campanhas de conscientização para que a população entenda o funcionamento do mecanismo, os seus direitos e as formas de acessá-lo, reduzindo barreiras de adesão, especialmente entre os mais vulneráveis.

“O modelo tributário brasileiro é marcadamente descentralizado, e o sucesso do cashback dependerá de acordos entre União, estados e municípios para harmonizar procedimentos e assegurar que os recursos sejam distribuídos de maneira uniforme e equitativa.”

A criação de conselhos ou comitês intergovernamentais para coordenar essas ações pode ser uma estratégia eficaz. Por fim, a fiscalização e a transparência serão pilares da implementação. Será necessário criar mecanismos de auditoria independentes, além de relatórios públicos regulares que permitam à sociedade acompanhar o impacto do cashback, avaliar sua eficácia e propor ajustes. O papel de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU) será crucial nesse contexto, garantindo que os recursos sejam aplicados de acordo com os objetivos da política pública.