*Por Tiago Ranieri
Falar sobre diversidade LGBTQIA+ hoje é inevitável. Está nos debates públicos, nas salas de aula, mesmo a contragosto, nas redes sociais, ainda que permeada por discursos gratuitos de ódio, sobretudo, nas experiências íntimas de quem tenta entender quem é — e por quê? As identidades, que compõe a diversidade, não são nomes/conceitos/limitações que damos a nós mesmos.
A diversidade LGBTQIA+ é um campo de disputa, sobretudo com a estrutura “cistêmica” heteronormativa, uma construção atravessada por violências, marginalização, apagamentos, omissão estatal, forças históricas, afetivas, simbólicas. Na filosofia, a pergunta “quem sou eu?” atravessa séculos. Desde Parmênides e o princípio da identidade lógica — “o ser é” — até as dúvidas existenciais modernas, a busca por um sentido do eu sempre foi inquietante. Só que esse “eu” nunca é neutro: ele fala de um lugar, carrega marcas e é moldado por narrativas.
No campo político, a identidade se torna um dispositivo de organização e exclusão. A criação de uma identidade nacional, por exemplo, foi fundamental para a formação dos Estados modernos, mas, também implicou silenciamentos. No Brasil, isso significa lidar com os apagamentos provocados pela colonização, pelo machismo, pela misoginia, pelo sexismo, pelo capacitismo, pela escravidão, pelo racismo estrutural, pela LGBTQIA+fobia estrutural. A ideia de um “povo brasileiro” muitas vezes escondeu as violências fundadoras dessa mesma identidade.
E há ainda a dimensão existencial: o sentimento de pertencer ou não a um grupo, de ser reconhecido ou ignorado. As identidades não são apenas ideias, elas doem, pesam, sustentam, marginalizam, mas são potência quando amplificadas as suas vozes. A psicanálise ajuda a pensar isso, pois somos feitos de espelhos, de identificações, de feridas. O “eu” não é inteiro, nem está pronto. É sempre em construção.
Há momentos em que a identidade parece nos proteger: ela nos dá um nome, um grupo, uma história, um lugar. Saber de onde se vem — ou afirmar isso com orgulho — pode ser uma força. É a identidade como possibilidade, como potência: ela nos ancora, nos conecta, nos dá linguagem para existir num mundo onde muitos corpos e vozes ainda são negados. Assumir uma identidade, muitas vezes, é o primeiro passo para deixar de ser invisível.
Mas há também o outro lado. A identidade, quando fixada como destino, pode se tornar um obstáculo. Ela impede o movimento, congela o sujeito numa definição. “Você é isso, logo não pode ser aquilo.” Essa lógica excludente, que transforma a diferença em fronteira, é perigosa, uma verdadeira heresia da separatividade. Ela reduz a complexidade da existência a categorias fechadas. E é aí que a identidade deixa de libertar para começar a aprisionar.
Nas lutas sociais, esse paradoxo aparece com força. Por um lado, os marcadores de identidade — raça, gênero, sexualidade, origem — são fundamentais para nomear opressões e exigir reparações. Por outro, há o risco de cristalizar esses marcadores, como se fossem essências imutáveis. E quando a identidade vira essência, ela para de escutar, de aprender, de se transformar.
Por isso, pensar as identidades (diversidade LGBTQIA+ e outros marcadores sociais de forma interseccional), hoje, não é apenas um exercício teórico e muito menos limitado ao campo jurídico. É uma necessidade urgente, política, ética e de efetivação de direitos humanos e fundamentais. Não se trata de definir o que somos, mas de abrir espaço para escutar o que poderíamos ser.
* Tiago Ranieri é procurador do Trabalho, diretor de assuntos legislativos da ANPT, coordenador do projeto “Mais Um Sem Dor”, que visa a formação humana, qualificação profissional e inclusão no mercado formal de trabalho de pessoas em vulnerabilidade socioeconômica.