Na Chapada dos Veadeiros (GO), uma das mais emblemáticas áreas de preservação do Cerrado brasileiro, o fogo não é apenas ameaça — pode ser também solução. A técnica da queima prescrita, cada vez mais adotada por especialistas e brigadas voluntárias, tem se consolidado como uma estratégia eficaz no controle preventivo de incêndios florestais de grande escala.
A prática consiste em queimar, de forma controlada e planejada, áreas com acúmulo excessivo de biomassa seca — o chamado “material combustível”. Esse manejo evita que o fogo, quando surgir naturalmente ou por ação humana, se espalhe de forma descontrolada. No Cerrado, bioma que evoluiu com o fogo como parte de seu ciclo ecológico, essa abordagem tem se mostrado especialmente útil.

A técnica é aplicada dentro do escopo do Manejo Integrado do Fogo (MIF), política que reúne saberes técnicos, científicos e tradicionais em ações articuladas de prevenção. Em julho de 2024, o Brasil deu um passo importante ao regulamentar o MIF por meio da Lei nº 14.944, que define diretrizes para o uso responsável do fogo em áreas naturais.
A implementação da queima prescrita na Chapada dos Veadeiros é conduzida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com apoio do Ibama/Prevfogo e de uma extensa rede de brigadas voluntárias. Segundo Pedro Paulo de Melo Cardoso, gerente de fogo do Parque Nacional da Chapada, o trabalho vai além das unidades de conservação. “Investimos também em educação ambiental, levando informações para escolas e comunidades próximas, reforçando a importância da prevenção”, afirma.
Nas zonas de amortecimento e regiões rurais, onde o combate aos incêndios depende de ação rápida, são os próprios moradores que fazem a diferença. É o caso de Lauro Jurgeaitis, brigadista voluntário e presidente da Associação Veadeiros, que atua há mais de duas décadas na região. “A presença das brigadas voluntárias garante agilidade e conhecimento do território. Em muitos casos, somos a primeira resposta antes da chegada de reforços”, relata.

Diversas brigadas comunitárias compõem a linha de frente no combate ao fogo. Em Alto Paraíso de Goiás, atuam a Brigada Voluntária de São Jorge e a Rede Contra o Fogo; em Cavalcante, a BRIVAC é responsável por proteger áreas sensíveis da fauna e flora; já a BVACS, em Colinas do Sul, cobre o sul da Chapada. Do Distrito Federal, a Brigada Guardiões da Cafuringa também se soma aos esforços em períodos críticos.
Essas equipes operam de forma integrada com os órgãos ambientais e contam com o apoio da população local. Segundo Cássio Tavares de Souza, coordenador do PREVFOGO em Goiás, o protagonismo comunitário é vital. “Mais de 95% dos brigadistas contratados são oriundos de comunidades quilombolas. Eles trazem um conhecimento empírico valioso sobre o comportamento do fogo e os ciclos naturais do Cerrado”, destaca.
Apesar da desconfiança inicial de parte da população, a eficácia da queima prescrita tem sido comprovada por dados e experiência prática. Estimativas do ICMBio indicam que áreas da Chapada onde a técnica foi adotada tiveram redução de até 60% na incidência de incêndios de grandes proporções.

“O segredo está no planejamento e na execução rigorosa. A queima prescrita segue protocolos técnicos, com avaliação climática, definição de zonas de segurança e monitoramento constante”, explica Pedro Paulo Cardoso.
Ainda assim, o caminho para consolidar a técnica enfrenta obstáculos. Entre eles, estão a logística de acesso a áreas remotas, a formação técnica contínua de brigadistas e a necessidade de recursos permanentes para equipar e manter as operações preventivas.
Reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros é um símbolo da biodiversidade do Cerrado, abrigando centenas de espécies endêmicas e importantes nascentes de água doce. O fogo, embora parte do ciclo ecológico, quando descontrolado representa uma ameaça devastadora.
Por isso, o fortalecimento das ações de manejo consciente, como a queima prescrita, é uma das apostas mais promissoras para equilibrar conservação ambiental com a realidade do clima seco e das queimadas ilegais que ainda assolam a região.
Como resume João Carlos Ribas, secretário de Meio Ambiente de Cavalcante e coordenador da BRIVAC: “O Cerrado não é apenas um bioma. É um modo de vida. E proteger essa riqueza depende de ciência, tradição e, acima de tudo, da participação de quem vive e cuida da terra todos os dias.”